Em julho de 2019, o caso de Thiago de Jesus Dias levantou o debate sobre a relação de trabalho informal envolvida nos processos dos aplicativos delivery. O entregador da Rappi morreu após sofrer um acidente vascular cerebral (AVC) na porta da cliente a quem ele levava um pedido, na cidade de São Paulo.
O Samu foi acionado, porém nenhuma ambulância foi enviada em duas horas de espera por socorro. Além disso, um motorista da Uber negou transportar Thiago até o hospital. A irmã de Thiago e um amigo conseguiram chegar ao local e levá-lo ao Hospital das Clínicas, mas era tarde.
O caso virou tema de discussão. O Procon-SP exigiu respostas do Rappi e da Uber, que negam responsabilidade. Entenda melhor o caso neste artigo.
O relato inicial
A situação foi relatada primeiramente nas redes sociais pela cliente que havia feito o pedido. A advogada Ana Luísa Pinto estava com amigos no bairro Perdizes quando pediu comida pelo app da Rappi.
Thiago era quem fazia a entrega e estava finalizando o serviço quando passou a relatar náusea e fortes dores de cabeça. Conforme a denúncia de Ana Luísa, ela e os amigos socorreram o entregador que começou a tremer e vomitar. O Samu foi acionado mas não enviou ambulância. “Fizemos todos os testes que nos orientaram pelo telefone e enfatizamos diversas vezes a urgência do caso”, relatou a advogada no seu Facebook.
Segundo a irmã de Thiago, quando ela e o amigo chegaram no local ele estava desmaiado e respirando com dificuldade. Em entrevista ao jornal Estadão, Dayane Jesus Dias contou que também ligou para o Samu, que informou já haver uma ocorrência registrada e que a situação seria classificada com urgência. De qualquer forma, Dayane chegou primeiro até o local da última entrega do irmão.
O Samu disse que o chamado com indicação de dor de cabeça foi registrado às 22h15 e classificado como prioridade média. Segundo a coordenação do órgão, foram adotadas medidas internas para investigar as circunstâncias do acontecimento.
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Rappi e Uber foram chamados
Enquanto acionavam o Samu e aguardavam a chegada da irmã de Thiago, Ana Luísa conta que o entregador da Rappi pediu para avisarem a empresa. De acordo com a publicação, eles foram orientados no atendimento a darem baixa no pedido. Isso para que a Rappi pudesse avisar os próximos clientes sobre atraso no horário previsto para entrega.
Além disso, a advogada relata ainda a tentativa de levar Thiago ao hospital chamando um motorista da Uber. “Carregamos ele para dentro do carro sob o argumento de que omissão de socorro é crime, mas nada adiantou. O Uber se recusou a fazer a viagem”, disse. “Thiago deixa uma filha pequena e a sensação de indignação em todos nós. Foram duas horas aguardando socorro e a omissão de seus empregadores e do Estado nos causa profundo sofrimento”, escreveu a advogada em seu post que teve repercussão nacional.
Em entrevista ao site BuzzFeed News, a mãe de Thiago informou que ele trabalhava com entregas da Rappi havia dois anos. Sua irmã disse que a empresa não entrou em contato com a família e que vai buscar os direitos para a sobrinha. “Por causa de negligência, por falta de socorro, ele acabou deixando uma filha de seis anos”, disse.
Ao BuzzFeed, a Rappi enviou uma nota lamentando a morte do entregador e reforçando que está apurando o ocorrido e aberta a colaborar com autoridades. A Uber, no entanto, não quis comentar o caso.
Leia o relato completo
https://www.facebook.com/analuisa.pinto.10/posts/2479298185467171
Empresas são notificadas
A Fundação Procon-SP notificou tanto a Rappi quanto a Uber para que prestassem esclarecimentos sobre o caso. Para o órgão, ambas têm responsabilidade sobre o caso da morte de Thiago.
A Rappi respondeu que “não contrata os entregadores parceiros. Muito pelo contrário, são os entregadores parceiros que contratam a Rappi para, por meio de plataforma tecnológica disponibilizada, entrar em contato com os usuários e angariar clientes para a sua atividade comercial de motofrentistas”.
Além disso, a empresa disse ao Procon que está desenvolvendo uma medida de segurança para os entregadores. Futuramente, um botão de alerta poderá ser acionado pelo aplicativo para comunicar situações emergenciais e avisar autoridades competentes.
Já em relação ao Uber, o Procon questionou a empresa se o motorista que não prestou socorro avisou o aplicativo e se houve punição.
A Uber respondeu que registrou “inúmeros casos em que, utilizando o aplicativo da Uber, motoristas parceiros levaram pessoas a hospitais e unidades de pronto atendimento. No entanto, é imprescindível esclarecer que a plataforma não substitui nem deveria substituir os serviços de emergência”.
A plataforma também se posicionou da mesma forma que a Rappi em relação ao vínculo empregatício. Referindo-se aos motoristas como “parceiros”, a Uber reforçou que eles não prestam serviços à empresa, mas aos usuários do aplicativo. Além disso, disse que a relação é exclusivamente comercial, pela qual “o motorista parceiro é o contratante da Uber para a utilização de sua plataforma tecnológica”.
A posição do Procon
A resposta das empresas não convenceu. Para o Procon, ainda que a relação mencionada pela Uber seja estritamente comercial e que seus parceiros não sejam profissionais de saúde, é responsabilidade das empresas prepará-los para atuar em situações de risco.
“O Procon-SP entende que não se trata de discussão sobre qual a natureza da relação entre os motoristas, entregadores e suas plataformas digitais, mas a discussão sobre a violação do direito à vida, a dignidade e a adequação dos produtos e serviços. Ninguém pode ter a sua vida colocada em risco ou abandonada em iminente perigo em decorrência de uma simples discussão sobre ausência de responsabilidade legal.”
Além disso, o comunicado do Procon reitera a responsabilidade das empresas citando o Código de Defesa do Consumidor. O documento garante a responsabilidade solidária dos fornecedores na disponibilização de produtos e serviços no mercado.
De acordo com Fernando Capez, diretor-executivo do Procon, essa relação de solidariedade torna a Rappi responsável pelo serviço prestado. Em entrevista à Folha, ele destaca ainda que a empresa não prestou socorro quando ficou sabendo da situação. Para ele, esse é o fator que mais pesa contra a Rappi.
O Procon divulgou que irá conduzir uma apuração mais aprofundada do caso de Thiago e a atuação das empresas. Informou também que irá aplicar medidas e sanções levando em conta o Código de Defesa do Consumidor.
Parcerias instáveis
Apresentados muitas vezes como novas formas de trabalho, os serviços de entrega e transporte oferecidos por softwares de tecnologia têm captado cada vez mais trabalhadores que buscam uma saída ao cenário de 12 milhões de desempregados no país.
A oportunidade de complementar a renda trabalhando com seus próprios horários acaba, em diversos casos, traduzindo-se em jornadas extensas e desgastantes para conseguir algo em torno de R$ 1 mil por mês.
Tudo isso enquanto as empresas vendem “liberdade e autonomia” para aqueles que não são seus funcionários ou empregados: são seus “parceiros”. Seus aplicativos são apenas a ponte entre o cliente e o prestador de serviços. Uma ponte extremamente frágil.
É preciso que estejamos atentos àquilo que a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP) classificou como “o desmonte de políticas públicas somada, concomitantemente, à ampla fragilização das relações de trabalho no Brasil”. Ou seja, um cenário que tem a praticidade para uns e a precarização do trabalho para outros.
Enquanto as empresas se esquivam das polêmicas e responsabilidades, o mínimo que podemos fazer é tratar com respeito e de forma digna os trabalhadores que recorrem à “parceria” desses softwares.
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